terça-feira, 7 de julho de 2015

Anestesia



Eu estava em casa, alisava a gata, fazia comida.
As alunas me ouviam, me arengavam quando me chegava a noite.
Eu cuidava dela quando chegava do trabalho.
A mim não dava muito valor, não via problemas.
Ela me incomodava com seus aperreios, deixava que os cães me dilascerassem.
Minha pele estava blindada de bronze, minha surdez me protegia.

Aos poucos, meus joelhos não mais se desdobravam.
Me acostumei em frente as telas, as incorporei.
As estacas cravadas em meus ouvidos escorregavam, ela não martelava mais, mas era quem mais sofria.
Ouvido e cérebro se tornaram uma coisa só:
gangrena e carcinoma.
Os vermes passeavam, não minhocas.

Contudo, nada doía. O espelho sempre me deixava belo.
Eu achava que só precisava de banho e oferecer moquecas.
O meu carinho a irritava. A ignorância me doía.
A vida se arrastava, o que mais amava se ia.
A dor em mim não doía.

De repente ela se foi. Só fiquei com a dor.
O carcinoma afetava meus nervos.
O que era pior, a dor ou anestesiamento?
Não, não consegui me ver. Deus me abandonara.
Tirou-me de mim e o que vivia.

Senti um corte do tamanho de um palmo em minha nuca.
Senhor, tu penetraste tuas mãos de fogo nos meus ombros
E arrancaste de uma só vez toda a pele das minhas costas!
De uma só vez arrancou-me o couro e os cabelos da minha cabeça.

Tu descarnaste-me na frente dos meus amigos.
Todos vêem a brancura dos meus ossos.
Meu sangue enxarcou o apartamento.
Nem sinto mais a dor. Não vejo mais esperança.
Mas tu, de longe me observa. Espera que as feridas cicatrizem.

Agora vejo carne cobrindo meus ossos, não vejo vermes.
Mesmo que ao me mover a pele sangre, ela se recupera.
Tu, desgraçadamente põe sal em meu corpo.
E quando eu reclamo, o Senhor mergulha-me no mar.
Não importa o quanto eu urre de dor.

Eu sei que o que me resta é a vida.
Pois o que eu mais temia o Senhor me fez sofrer.
E ao mais me aterrorizava, tu me confrntaste.
Só me sinto vivo porque tume deste a dor como vida.

Seja pra que lado eu me mova, minha carne racha e o sangue escorre.
Tu zombeteiramente me pôs de frente ao espelho, justamente eu que nunca me via, nunca quis me ver.
Sempre fui ébano, cabelos de lã, dentes de marfim.
Mãos de vó para a cozinha.
A alegria dos amigos, dos alunos, do mundo afora.

Mesmo assim, ainda insisto em me mover freneticamente pra não me olhar no espelho,
Ainda que os sulcos de carme me ardam.
Porque não escutei o aperreio?
Porque só me via pelas cascas?
Agora só me resta a visão subcutânea.

Eu só sei que a vida ainda me resta, pois a morte não vem.
Será que amanhã esterei mai ferido que hoje?
Vou conseguir olhar pro espelho que o Senhor me deu por tortura como salvação?
Os tonéis de sal me esperam, a cura vai ser dolorosa.


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