Diante de uma situação bastante pessoal, me pergunto como seriam
certas coisas na vida se tudo desse errado, ou se a vida mudasse de
rumo. Me refiro diretamente aos planos de trabalho numa sociedade
onde toda atividade produtiva é submetida a necessidades
financeiras; não a produção de vida, o que de fato o produto do
trabalho realiza. Mas aos vínculos empregatícios e as carreiras
decorrentes destes pra quem desenvolvem uma profissão: a progressão
de salários e do status social de determinada ocupação, a
construção de redes de solidariedade entre profissionais e com
empresas, a sólida teia de parceiros em uma cidade ou região onde
possibilidades profissionais são concretas de acordo com o
reconhecimento construído enquanto profissional. O que se fazer
quando tudo isso se desmorona? Independente da justeza dos
acontecimentos, sabemos que a surpresa dos absurdos pode visitar
qualquer pessoa. Pensando nisso eu trago estas questões. Como
reagir? A que estamos dispostos mesmo quando acabam as cartas na
manga? O que realmente temos (se é que temos alguma coisa nesta
vida)? O que construímos em termos de conhecimento pra recomeçar? E
o que fazemos com estas experiências? Como um homem com trinta e
sete anos se sente ao ter que reorganizar toda sua vida? Quais meios
dispõe? Quais disposições tem? E o que é capaz de fazer com estes
meios?
Pra ilustrar bem o que estou falando, vamos à realidade concreta.
Pra maioria das pessoas, o ano de 2019 foi um ano muito difícil,
dentre outros motivos, especialmente no que se refere a questões
materiais, possibilidades financeiras, revezes no ambiente do
trabalho por causa disto, e de forma geral as cotidianas surpresas no
espectro político, nacional e internacional. Para os analistas das
diversas áreas, este ano foi o de grandes revelações, onde
identificamos crises diversas bem como suas causas. Mas como homem
prático que sou, revelações não pagam contas. Por mais analítico
que eu seja, introspectivo sobre tudo o que passa ao meu redor,
também tentei tirar elementos concretos de onde eu pudesse melhorar
minha condições materiais, me vi em uma grande crise, inclusive uma
das maiores da minha vida, afetando portanto em outras áreas da
vida.
Fato é que esse ano que se passou nos revelou muita coisa, trouxe
muita crise e ainda que não tenha impactado pessoalmente algumas
pessoas, o contexto político foi e está sendo bastante
desalentador. Comigo não está sendo diferente. A instituição de
nível superior onde trabalho, que é parte de um grupo regional tem
tido através de seus mantenedores e coordenações posturas
profissionais bastante desalentadoras, equivalentes ao cenário
político, algo que se realiza na prática ao que foi mencionado no
primeiro parágrafo. Onde oportunidades de desenvolvimento
profissional não são vislumbradas, além de recorrentes perdas em
carga horária em classe e por conseguinte perdas salariais. O
ambiente tem se tornado difícil e em algumas situações intragável.
Um contexto onde os profissionais poderiam buscar seus direitos, mas
não o fazem porque precisam manter o vínculo empregatício e mesmo
que se desvinculem-se o façam sem sofrer retaliações da
instituição de trabalho, concretamente refiro-me a uma imagem
negativa que pode estar associado por buscar legitimamente seus
direitos, por recorrer às vias de fato nos termos da lei. Tememos a
proscrição a partir da instituição da qual evadiu sob o estigma
de “profissional problemático”, do tipo que “põe no pau”,
termo bem característico de Salvador.
Diante de tudo isso considero de fato a postura dos colgas, pais de
família em sua maioria, quando não os que estão constituindo
patrimônio, fazendo nome na cidade, fortalecendo seu “network”
na cidade. Imediatamente não os julgo, pois sem refletir nem pensar
como atualmente penso, me vi preso a essas engrenagens de exploração
de vidas. Digo isto porque nas vias de fato de além de perder o
emprego, ainda que mantenham vínculos em outas IES (instituições
de ensino superior) ou empresas, ou mesmo tendo os encargos de uma
rescisão indireta (isso mesmo, procurem no Google pra saber do que
se trata; tive um trabalho enorme pra descobrir, não vou entregar
uma informação dessa de mão beijada pra vocês); os colegas teriam
que amargar a já citada pecha de “profissional que põe no pau”.
E assim portanto ter que se manter como que o mercado de trabalho
oferecer pra se sustentar.
Conforme já dito acima, não considero justo nenhum tipo de
julgamento aos profissionais que tanto fazem pelas IES privadas e
pelo país através da educação. Mas o que estes donos de empresa
fazem é um enorme desrespeito. Temos cotidianamente nossa dignidade
colocada em questão, se não através dos pequenos acordos pra
manter uma boa carga horária, pela nossa própria consciência que
nos lembra do sonhos que tínhamos na graduação: a liberdade de
cátedra e seus louros, o aprofundamento nas questões de sociedade
que sabemos ser essenciais para compreensão de problemas estruturais
em nosso país, e as possibilidades de intervenção direta nas
necessidades estratégicas da região e do país. Tudo isso passando
longe da nossa realidade de professores de IES privadas que pouco se
importam essas tais necessidades, por mais reais que sejam. Fato é
que diante de tudo, sempre perguntamos o que fazer com tudo isso e o
que realmente somos como profissionais. Qual é nossa utilidade
enquanto profissionais?
Realmente este ano que passou foi muito difícil. Mas se algo de bom
pude aproveitar foi a difícil reflexão sobre as duras provas que
passei, sobre as oportunidades que podemos usufruir deste contexto.
Concluo depois de noites sem sono, crises depressivas e de ansiedade
patológica, depois de descobrir que de fato, de forma concreta, o
que temos em vínculos empregatícios e bens materiais são coisas
bastante escorregadias, salvo raríssimas exceções (herança de
família e riquezas ancestrais decorrentes disso, ou sólida carreira
pública). Depois de ter em quase todos os meses deste ano atrasos no
pagamento, amargando intervalos de completa falta de recursos e todos
os inconvenientes trazidos à tiracolo pela falta de grana, foi
preciso pensar em outros meios de subsistência. Mas mesmo assim não
posso dizer que a descoberta de tais alternativas foi constituída de
folgas emocionais ou de um leque de possibilidades que a vida me deu;
mas da desconfortável descoberta que minha dignidade se manteve
diante de tantos revezes, diante de tantas imposturas que tive que
conviver nestes anos. Tendo que repetidas vezes me contentar em
manter pra mim mesmo a satisfação em ver o desabrochar das
descobertas dos estudantes, ver o brilho nos olhos a liberdade que o
conhecimentos os trazia. Nada mais que isso. Ver o enorme potencial
de alguns se perdendo nas malandragens burocráticas e vícios que as
engrenagens que o mercado de trabalho impõem aos que perdem seus
sonhos acadêmicos. Sim, pois o encanto inicial que se tem na
graduação por parte dos estudantes se perde na mediocridade das
limitações nas avaliações, da recorrente negação de recursos
para pesquisas de campo ou grupos de pesquisa (negação não,
impossibilidade mesmo). Tudo isso se arrefece ao ponto de nem lembrar
mais da beleza do convívio na faculdade alguns alunos ter mais.
Depois desta divagação, é claro que eu não ia esquecer do que
interessa nessa conversa que adentra a madrugada, afinal, o sol já
começa a lançar seus raios. Em meio a dor e a privação me vejo
com algo que a maioria dos colegas não tem, a possibilidade de real
escolha. O tipo de escolha que se impõe às negações do mercado,
ao preterimento corporativo que as empresas concorrentes fazem aos
profissionais que optam pela liberdade, que jamais negociam sua
dignidade. Me refiro a coragem de enfrentar uma IES privada recomeçar
tudo de novo em outro ramo de atividade ou em outra cidade, coragem
de aprender outra profissão ou aprender um idioma. A coragem e a
disposição pra se refazer depois ter sua reputação manchada por
buscar melhores oportunidades, por crer que posso mais, ainda que
precise começar tudo de novo. Saber que nada tenho e que quando
tenho algo tratam-se de materialidades escorregadias. Isso me fez ver
o valor do conhecimento acumulado nos idos poucos seis anos entre a
graduação e o mestrado, e os seis anos de prática docente, que não
obstante a isso, os motivos já estão bem nítidos, é preciso
continuar na busca pelo conhecimento.
A gente descobre que é livre quando sabe que pode começar de novo
depois de perder tudo, conforme dito de forma indireta acima. É
libertador descobrir que as possibilidades existem exatamente quando
nada se tem, quando a disposição se fortalece justamente por isso;
pois quando se crê que as possibilidades se revelam no conforto da
crença de uma pretensa segurança, nada mais se trata de uma falsa
sensação de liberdade, onde só podemos usufruir das migalhas que o
mercado nos dá. Admito que realmente é muito difícil usufruir do
que a vida nos dá a despeito das imposições do mercado: das
marcantes experiências pessoais, do conhecimento profundo, das reais
possibilidades de escolha e de manter a dignidade quando o absurdo
nos invade. Mas não viver sob esta perspectiva é adoecedor, é
frustrante; nos faz eternos debitantes das dependências que
mediocridades cotidianas nos lucram, ou de sorrisos amarelos que
temos a oferecer, das contínuas indigestões emocionais que temos
pelos sapos que temos que engolir, pela contínua ressaca da cachaça
de graça que temos que engolir. Dizer “Deus lhe pague” por tudo
isso é ensandecedor. Refazer a vida diante de tudo isso é
libertador!
Diante de tudo isso vejo e entendo o porque quase não se fala da
responsabilidade da profunda dor que viver a liberdade traz. Das
várias versões de si mesmo que temos que elaborar diante das
possibilidades que falsamente nos propões em troca de um “Deus lhe
pague”, por um “gratidão!” e todas as pavorosas falas e frases
de efeitos que inventamos pra nos adoecer e estar bem com nossos
algozes. Somente a fé em Deus que nos liberta, que dolorosamente nos
lembra do nada que somos nos faz capazes de tirar leite de pedra (ou
água da rocha). É o que nos faz capaz de nos movermos não somente
pela nossa dignidade individual, ou pelos nossos méritos, mas pela
dignidade humana. É a fé em Deus que nos emancipa, que destrona os
deuses do dinheiro e do mercado, que nos relembra que é somente pela
morte que podemos ressuscitar pra começar tudo de novo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário