terça-feira, 21 de janeiro de 2020

No fundo, a realidade que temos é a residual


       Diante de uma situação bastante pessoal, me pergunto como seriam certas coisas na vida se tudo desse errado, ou se a vida mudasse de rumo. Me refiro diretamente aos planos de trabalho numa sociedade onde toda atividade produtiva é submetida a necessidades financeiras; não a produção de vida, o que de fato o produto do trabalho realiza. Mas aos vínculos empregatícios e as carreiras decorrentes destes pra quem desenvolvem uma profissão: a progressão de salários e do status social de determinada ocupação, a construção de redes de solidariedade entre profissionais e com empresas, a sólida teia de parceiros em uma cidade ou região onde possibilidades profissionais são concretas de acordo com o reconhecimento construído enquanto profissional. O que se fazer quando tudo isso se desmorona? Independente da justeza dos acontecimentos, sabemos que a surpresa dos absurdos pode visitar qualquer pessoa. Pensando nisso eu trago estas questões. Como reagir? A que estamos dispostos mesmo quando acabam as cartas na manga? O que realmente temos (se é que temos alguma coisa nesta vida)? O que construímos em termos de conhecimento pra recomeçar? E o que fazemos com estas experiências? Como um homem com trinta e sete anos se sente ao ter que reorganizar toda sua vida? Quais meios dispõe? Quais disposições tem? E o que é capaz de fazer com estes meios?
       Pra ilustrar bem o que estou falando, vamos à realidade concreta. Pra maioria das pessoas, o ano de 2019 foi um ano muito difícil, dentre outros motivos, especialmente no que se refere a questões materiais, possibilidades financeiras, revezes no ambiente do trabalho por causa disto, e de forma geral as cotidianas surpresas no espectro político, nacional e internacional. Para os analistas das diversas áreas, este ano foi o de grandes revelações, onde identificamos crises diversas bem como suas causas. Mas como homem prático que sou, revelações não pagam contas. Por mais analítico que eu seja, introspectivo sobre tudo o que passa ao meu redor, também tentei tirar elementos concretos de onde eu pudesse melhorar minha condições materiais, me vi em uma grande crise, inclusive uma das maiores da minha vida, afetando portanto em outras áreas da vida.
       Fato é que esse ano que se passou nos revelou muita coisa, trouxe muita crise e ainda que não tenha impactado pessoalmente algumas pessoas, o contexto político foi e está sendo bastante desalentador. Comigo não está sendo diferente. A instituição de nível superior onde trabalho, que é parte de um grupo regional tem tido através de seus mantenedores e coordenações posturas profissionais bastante desalentadoras, equivalentes ao cenário político, algo que se realiza na prática ao que foi mencionado no primeiro parágrafo. Onde oportunidades de desenvolvimento profissional não são vislumbradas, além de recorrentes perdas em carga horária em classe e por conseguinte perdas salariais. O ambiente tem se tornado difícil e em algumas situações intragável. Um contexto onde os profissionais poderiam buscar seus direitos, mas não o fazem porque precisam manter o vínculo empregatício e mesmo que se desvinculem-se o façam sem sofrer retaliações da instituição de trabalho, concretamente refiro-me a uma imagem negativa que pode estar associado por buscar legitimamente seus direitos, por recorrer às vias de fato nos termos da lei. Tememos a proscrição a partir da instituição da qual evadiu sob o estigma de “profissional problemático”, do tipo que “põe no pau”, termo bem característico de Salvador.
       Diante de tudo isso considero de fato a postura dos colgas, pais de família em sua maioria, quando não os que estão constituindo patrimônio, fazendo nome na cidade, fortalecendo seu “network” na cidade. Imediatamente não os julgo, pois sem refletir nem pensar como atualmente penso, me vi preso a essas engrenagens de exploração de vidas. Digo isto porque nas vias de fato de além de perder o emprego, ainda que mantenham vínculos em outas IES (instituições de ensino superior) ou empresas, ou mesmo tendo os encargos de uma rescisão indireta (isso mesmo, procurem no Google pra saber do que se trata; tive um trabalho enorme pra descobrir, não vou entregar uma informação dessa de mão beijada pra vocês); os colegas teriam que amargar a já citada pecha de “profissional que põe no pau”. E assim portanto ter que se manter como que o mercado de trabalho oferecer pra se sustentar.
       Conforme já dito acima, não considero justo nenhum tipo de julgamento aos profissionais que tanto fazem pelas IES privadas e pelo país através da educação. Mas o que estes donos de empresa fazem é um enorme desrespeito. Temos cotidianamente nossa dignidade colocada em questão, se não através dos pequenos acordos pra manter uma boa carga horária, pela nossa própria consciência que nos lembra do sonhos que tínhamos na graduação: a liberdade de cátedra e seus louros, o aprofundamento nas questões de sociedade que sabemos ser essenciais para compreensão de problemas estruturais em nosso país, e as possibilidades de intervenção direta nas necessidades estratégicas da região e do país. Tudo isso passando longe da nossa realidade de professores de IES privadas que pouco se importam essas tais necessidades, por mais reais que sejam. Fato é que diante de tudo, sempre perguntamos o que fazer com tudo isso e o que realmente somos como profissionais. Qual é nossa utilidade enquanto profissionais?
       Realmente este ano que passou foi muito difícil. Mas se algo de bom pude aproveitar foi a difícil reflexão sobre as duras provas que passei, sobre as oportunidades que podemos usufruir deste contexto. Concluo depois de noites sem sono, crises depressivas e de ansiedade patológica, depois de descobrir que de fato, de forma concreta, o que temos em vínculos empregatícios e bens materiais são coisas bastante escorregadias, salvo raríssimas exceções (herança de família e riquezas ancestrais decorrentes disso, ou sólida carreira pública). Depois de ter em quase todos os meses deste ano atrasos no pagamento, amargando intervalos de completa falta de recursos e todos os inconvenientes trazidos à tiracolo pela falta de grana, foi preciso pensar em outros meios de subsistência. Mas mesmo assim não posso dizer que a descoberta de tais alternativas foi constituída de folgas emocionais ou de um leque de possibilidades que a vida me deu; mas da desconfortável descoberta que minha dignidade se manteve diante de tantos revezes, diante de tantas imposturas que tive que conviver nestes anos. Tendo que repetidas vezes me contentar em manter pra mim mesmo a satisfação em ver o desabrochar das descobertas dos estudantes, ver o brilho nos olhos a liberdade que o conhecimentos os trazia. Nada mais que isso. Ver o enorme potencial de alguns se perdendo nas malandragens burocráticas e vícios que as engrenagens que o mercado de trabalho impõem aos que perdem seus sonhos acadêmicos. Sim, pois o encanto inicial que se tem na graduação por parte dos estudantes se perde na mediocridade das limitações nas avaliações, da recorrente negação de recursos para pesquisas de campo ou grupos de pesquisa (negação não, impossibilidade mesmo). Tudo isso se arrefece ao ponto de nem lembrar mais da beleza do convívio na faculdade alguns alunos ter mais.
       Depois desta divagação, é claro que eu não ia esquecer do que interessa nessa conversa que adentra a madrugada, afinal, o sol já começa a lançar seus raios. Em meio a dor e a privação me vejo com algo que a maioria dos colegas não tem, a possibilidade de real escolha. O tipo de escolha que se impõe às negações do mercado, ao preterimento corporativo que as empresas concorrentes fazem aos profissionais que optam pela liberdade, que jamais negociam sua dignidade. Me refiro a coragem de enfrentar uma IES privada recomeçar tudo de novo em outro ramo de atividade ou em outra cidade, coragem de aprender outra profissão ou aprender um idioma. A coragem e a disposição pra se refazer depois ter sua reputação manchada por buscar melhores oportunidades, por crer que posso mais, ainda que precise começar tudo de novo. Saber que nada tenho e que quando tenho algo tratam-se de materialidades escorregadias. Isso me fez ver o valor do conhecimento acumulado nos idos poucos seis anos entre a graduação e o mestrado, e os seis anos de prática docente, que não obstante a isso, os motivos já estão bem nítidos, é preciso continuar na busca pelo conhecimento.
       A gente descobre que é livre quando sabe que pode começar de novo depois de perder tudo, conforme dito de forma indireta acima. É libertador descobrir que as possibilidades existem exatamente quando nada se tem, quando a disposição se fortalece justamente por isso; pois quando se crê que as possibilidades se revelam no conforto da crença de uma pretensa segurança, nada mais se trata de uma falsa sensação de liberdade, onde só podemos usufruir das migalhas que o mercado nos dá. Admito que realmente é muito difícil usufruir do que a vida nos dá a despeito das imposições do mercado: das marcantes experiências pessoais, do conhecimento profundo, das reais possibilidades de escolha e de manter a dignidade quando o absurdo nos invade. Mas não viver sob esta perspectiva é adoecedor, é frustrante; nos faz eternos debitantes das dependências que mediocridades cotidianas nos lucram, ou de sorrisos amarelos que temos a oferecer, das contínuas indigestões emocionais que temos pelos sapos que temos que engolir, pela contínua ressaca da cachaça de graça que temos que engolir. Dizer “Deus lhe pague” por tudo isso é ensandecedor. Refazer a vida diante de tudo isso é libertador!
       Diante de tudo isso vejo e entendo o porque quase não se fala da responsabilidade da profunda dor que viver a liberdade traz. Das várias versões de si mesmo que temos que elaborar diante das possibilidades que falsamente nos propões em troca de um “Deus lhe pague”, por um “gratidão!” e todas as pavorosas falas e frases de efeitos que inventamos pra nos adoecer e estar bem com nossos algozes. Somente a fé em Deus que nos liberta, que dolorosamente nos lembra do nada que somos nos faz capazes de tirar leite de pedra (ou água da rocha). É o que nos faz capaz de nos movermos não somente pela nossa dignidade individual, ou pelos nossos méritos, mas pela dignidade humana. É a fé em Deus que nos emancipa, que destrona os deuses do dinheiro e do mercado, que nos relembra que é somente pela morte que podemos ressuscitar pra começar tudo de novo.

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